Spotify é uma das marcas mais amadas no mundo e a maior plataforma de audio streaming do planeta. Uma empresa reconhecidamente inovadora com seus algoritmos de recomendação e curadoria com playlists personalizadas, difundiu o modelo freemium como formato inovador para angariar novos usuários rapidamente e conquistou fãs no mundo corporativo com seu famoso framework de squads ágeis, aplicado em milhares de em empresas ao redor do globo.
Queridinha da geração Z, o Spotify sabe como se comunicar com seu público. Eles tem essa competência porque conhecem muito bem o comportamento de cada usuário a partir da coleta e modelagem de dados nas suas interações com a plataforma.
Com uma valiosíssima equipe de Pesquisa e Desenvolvimento, o Spotify investiu quase 2 bilhões de dólares apenas no último ano, demonstrando sua imensa capacidade de inovar neste mercado. Mas como toda empresa de tecnologia, dos muitos projetos testados, somente alguns vingam e outros tantos morrem. Mas um caso em especial me chamou a atenção recentemente: o Car Thing, um device de música sem necessidade de instalação no carro para o usuário interagir facilmente sem precisar pegar o smartphone.
Com um meticuloso plano de lançamento, recheado de técnicas de gamificação e gatilhos comportamentais, o produto alcançou uma massiva adesão do público mas foi prematuramente descartado pela própria companhia sem qualquer consideração de seu principal stakeholder: o usuário.
Long story short
Resumidamente, a empresa criou alta expectativa lançando um projeto experimental voltado aos usuários “mais valiosos” com uma lista de espera de seis meses para testar o produto nos EUA. Com 2 milhões de pessoas interessadas, o lançamento controlado foi realizado com o patrocínio financeiro dos próprios clientes que pagaram 80 dólares pelo dispositivo. Após breve período de experimentação, a empresa lança o produto para o mercado pelo preço de tabela de 90 dólares.
Em 5 meses, a companhia anuncia discretamente em seu relatório para investidores de que suspendeu a produção do produto:
“A Margem Bruta Relatada foi negativamente impactada por nossa decisão de parar a fabricação do Car Thing”.
Ao serem questionados pela imprensa, um porta-voz da empresa diz:
“Com base em vários fatores, incluindo a demanda do produto e questões na cadeia de suprimentos, decidimos interromper a produção de novas unidades do Car Thing. Os dispositivos existentes continuarão a funcionar conforme o esperado. Esta iniciativa proporcionou aprendizados valiosos, e continuamos focados no carro como um local importante para o áudio.”
Em seguida, o preço das unidades disponíveis para venda no próprio site da empresa caiu para 50 dólares. Sem expectativas de relação ao futuro do dispositivo, os clientes temiam pelo pior.
Em menos de 2 anos o Spotify anuncia em sua página corporativa a descontinuidade operacional do produto fazendo com que o dispositivo deixe de funcionar por completo. Na página, os clientes são informados sobre o prazo final de funcionamento, como descartar o produto adequadamente no lixo e de que a empresa não fará reembolsos a ninguém.
A reação negativa dos usuários foi imediata causando grande repercussão nas redes sociais, em especial pela geração Z no TikTok. Em consequência, uma ação coletiva movida no Tribunal Distrital dos EUA alegando que o Spotify enganou os consumidores ao vender-lhes um produto que em breve se tornaria obsoleto e, em seguida, não oferecer reembolsos.
Em resposta à crise instalada, a empresa encaminhou uma comunicação aos seus clientes convidando-os para entrar em contato com o suporte para responder seus questionamentos. Houve relatos de que alguns usuários ganharam alguns meses de Spotify Premium e outros receberam o dinheiro de volta após apresentar o recibo de compra.
Dois pesos, duas medidas
Para uma empresa que preza pela comunicação próxima ao cliente, o lançamento de um produto é feito com exímia qualidade a partir de técnicas de storytelling que encantam o usuário. É premissa em empresas deste nível criarem o ‘momento wow’ contando suas histórias, engajando o cliente em suas narrativas e divulgando tudo o que faz, com inteligência, estratégia e mensagens claras.
Esta construção faz parte da criação de valor da marca gerando o que chamamos de reputação, um ativo intangível para a companhia no mercado. Mas, muitas vezes, este esforço para valorizar este ativo intangível só acontece no lançamento de produtos. Pouco se vê na descontinuidade deles.
Reputação e Risco Reputacional
Quando se trata de estratégia de comunicação corporativa, o PhD Elliot S. Schreiber, especialista em gestão de reputação, cita:
“Se a reputação é um ativo intangível obtido por meio da criação de valor para cada um de seus stakeholders, o risco reputacional é o resultado de não entregar esse valor.”
O Spotify causou a si um grande risco reputacional por não considerar àqueles usuários “mais valiosos” que investiram financeiramente em um projeto promovido pela própria empresa e que voluntariamente disponibilizaram seu próprio tempo para validar hipóteses de uma companhia bilionária. Os clientes “mais valiosos” compõem o ativo intangível de uma empresa e podem transformar reputação em risco reputacional pela falta de comunicação entre eles.
Um plano de descontinuidade não se restringe às áreas de produto e operações. É responsabilidade das lideranças e do conselho de administração ter um plano de gestão de reputação corporativa que preveja situações onde tão importante quanto comunicar bem quando se lança algo é comunicar com excelência quando for preciso se despedir.